O caçador, o cozinheiro e o viajante. O mordomo e o dono da casa (instinto - emoções - cognição / ego - Si-mesmo). Bruno Fontoura - Psicólogo / Psicoterapeuta • CRP04/39391
O caçador é forte e implacável - certeiro e persistente - resistente, atento e perseverante. Carrega a ação e a urgência naquilo que não pode faltar ou falhar; é responsável por trazer em tempo hábil o alimento.
O cozinheiro tem como seu reino e seu laboratório a cozinha. Com tato e justa medida ele fermenta, mistura, aquece, higieniza, corta, separa e volta a unir o alimento cru que traz o caçador. O cozinheiro deve manter a casa alimentada, o alimento processado, palatável, de fácil digestão.
Toda a técnica de caça, todo aperfeiçoamento das armas e instrumentos usados também na cozinha, toda a informação precisa que chega até a casa e dinamiza seu funcionamento, todas as novas receitas vem pelo viajante. O viajante possui a liberdade de ir e vir, a liberdade de experimentação e aperfeiçoamento que nascem dessas viagens. Ele traz até à casa a clareza do aprimoramento pois pode ter acesso a outros mapas, outras regiões. O viajante pode 'ver' o todo e conhecer outros mundos.
A primeira instância, superior pela função que lhe foi entregue e responsável pela administração e ordem das outras três - está a cargo do mordomo. O mordomo, administrador ou gerente desse local não é o dono do local mas tem sua intimidade e deveria ter também sua confiança. Por mais refinado, preparado - por mais responsável e anfitrião - o mordomo da casa não é o senhor dessa casa; não é ele quem manda e aí começa toda confusão.
O mordomo possui a chave das portas, é ele quem abre para o caçador ao entrar e sair. Ele quem observa e cuida das cercanias e da estrada que leva à mata; é ele quem garante a mesa servida e organizada, determina o cardápio e a qualidade da comida, a integridade dos alimentos, temperos e insumos. Ele quem garante o cumprimento dos horários e funções. O mordomo é quem, de fato, pode manter a casa em ordem; mas seu mando e suas direções, sua ação nesse local estão e devem estar sob a autoridade do dono. Sua proximidade e relação direta com o Senhor dessa casa garantirá o andamento de tudo, a impecabilidade de tudo.
Não é preciso dizer os inúmeros problemas que podem surgir em uma casa com desordem funcional, onde não há vínculo e contato, onde não há integração entre as funções e responsáveis. O caçador é pura força e imediatismo em sua urgência, ele pode virar essa casa pelo uso da força, de armas e da tirania, pode arrombar a porta e pode até mesmo se alimentar sozinho, sem qualquer tempero ou sofisticação. O cozinheiro é delicado mas é ardiloso, orgulhoso, envaidecido e pode, com minúcia e dissimulação envenenar toda essa casa; pode retirar todo sal e sabor, pode apimentar em demasia. E pode, claro, simplesmente negar o seu preparo, servir cru e mal passado. Nessa casa ninguém será demitido e assim é o mundo subjetivo / biológico e suas instâncias. O viajante, de fato, pode não mais voltar. Pode permanecer em outras áreas, pode viver do que não é dele. Pode pagar o preço de outro local e também pode, se assim desejar, morar bem próximo do dono, no topo da montanha; se recusar a exercer sua função que é estar e caminhar pelo mundo, investigar o mundo.
O embate nessa estrutura e o fator chave do seu sentido é que o Senhor dessa casa não poderá substituir os moradores, não poderá demiti-los de suas funções mas pode alertá-los, prepará-los com toques sutis ou enfiando o pé na porta, pois na demolição não sobrará ninguém. Com o fim ou com a destruição da casa findam-se também e também são destruídos os moradores. Não há outra saída (e assim é a experiência da vida) que não seja o funcionamento integrado dos moradores da casa; a plena ação e concordância entre as funções (a não-fragmentação) e um gerente, uma linha de frente, um mordomo que não esteja louco. Que não impeça a caça, que não esconda alimentos, que não seja mesquinho e hostil com o viajante; que escute e tenha contato direto com o Senhor da casa. O dono da floresta. Aquele que permanece depois da demolição.
Bruno Fontoura
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